Eu demorei um pouco para perceber que cada nome na árvore genealógica da minha família era mais que um nome. Elas foram alguém, afinal de contas, com suas histórias, esperanças, anseios, felicidades, tristezas, assim como qualquer um de nós. Ao me dar conta disso, entendi que era preciso honrar, de certa forma, a história de cada um na árvore.
Ao mesmo tempo em que passei a compreender isso, meu pai veio com a ideia de escrever um livro sobre uma parte de nossa família. Fizemos juntos isso e o resultado foi muito interessante. E, garanto, é uma experiência incrível para quem quer se aprofundar na história da família e contá-la para as outras pessoas.
Obviamente que não é algo fácil de se fazer. Debruçar-se sobre documentos para abastecer a árvore genealógica já é trabalho suficientemente desgastante. O livro, na verdade, é o resultado do que interpretamos das relações de cada um presente na árvore. Partindo de documentos oficiais, é possível interpretar e tirar um pouco da rigidez da burocracia e dar vida ao antepassado.
Em várias situações temos poucas informações à disposição. Um documento de nascimento, por exemplo. Mas a partir dele podem surgir coisas incríveis para contar a história de alguém. Sabemos a data e o local. Ótimo. Que tal, então, se transportar para aquele lugar naquela época? A busca agora extrapola os registros e vão para os livros, para fotos antigas e assim por diante. Ao fazermos isso, conseguimos compreender, mesmo que superficialmente, como era a vida de alguém da família.
Muitos brasileiros são descendentes de imigrantes. Com alguma imaginação e suporte em livros e documentos, é fácil compreender como era difícil alguém deixar a cidade de origem em um país europeu, por exemplo, embarcar em um vapor em péssimas condições, desembarcar no Brasil, passar pela Hospedaria dos Imigrantes e ser enviado para uma fazenda qualquer no interior.
As histórias de cada um são únicas, é fato, mas elas são compartilhadas por dezenas, centenas e milhares de outras pessoas.
Para escrever o livro sobre a história da sua família, eu sugiro primeiro reunir todas as informações que você tem, todos os documentos, mapear os locais e as épocas. A partir disso, separe por ramos e tente compreender a lógica e os caminhos percorridos pelas pessoas. Ao juntar tudo isso e unir com informações existentes em livros e afins, você terá uma riqueza de detalhes que não imaginaria.
Ao mesmo tempo, você pode agregar com as histórias contadas pelos familiares mais antigos. Aquelas fotos antigas também podem entrar. E, claro, a árvore genealógica não pode faltar.
O mais importante é contar a história. É sentar, escrever e compreender de onde viemos e que quem somos hoje se deve também a cada uma daquelas pessoas que estão na árvore genealógica, que são mais que nomes.
Abaixo eu deixo um exemplo disso tudo que escrevi. É o início do primeiro capítulo do livro que ajudei meu pai a escrever. É um misto de informação com alguma dose de imaginação.
Capítulo Um – Os filhos do conde
Ao nascer do sol, os raios de luz batem no alto da colina. O primeiro ponto a ser atingido é o castelo. Ou o que um dia foi um castelo. Apenas ruínas de uma construção medieval podem ser vistas. Uma das torres está por ali. As muralhas ainda resistem ao tempo e às árvores que insistem em avançar sobre suas pedras. Quase não se sabe mais o que é rocha e o que é verde. Estão abraçados.
Durante séculos, tal castelo foi palco de diversos avanços e rebeliões envolvendo os Reinos de Nápoles e de Aragão. O vai e vem do poder mudou a importância da construção ao longo dos anos. Foi somente em 1485, quando os perigos dos ataques venezianos foram cessados, que o castelo deixou de ser uma guarnição real para se tornar um retrato da autoridade feudal.
Perto do castelo, a poucos passos, uma igreja. A mais antiga de Melissa. Não se sabe exatamente quando a San Giacomo Apostolo foi erguida, mas já existia pouco antes de 1500. Não é mais a mesma daquela época, claramente. Depois de tantas reformas, não restou muito da original. Ainda de pé, acima da porta, lapidado em pedra, o escudo de um leão com cinco pétalas de rosas. Um sinal para lembrar que ali mandava Francesco Campitelli, conde de Melissa e príncipe de Strongoli. O poder e a proximidade com a Igreja Católica eram tamanhos que mandou construir em 1633 um monumento funerário em sua própria homenagem. No mármore preserva-se a inscrição “morte de um grande nome”. Seu corpo, porém, foi sepultado em Strongoli, a mais de quinze quilômetros dali, 32 anos mais tarde.
Castelo, igreja e Campitelli tem lá suas ligações mais íntimas. Uma de tantas histórias de Melissa conta que ao final de cada cerimônia de casamento realizada na San Giacomo Apostolo, o conde aguardava próximo dali pela noiva. Ele, então, a levava a seu aposento no castelo e exercia seu direito à primeira noite. Por isso, até hoje, fala-se em Melissa: “todos somos filhos do conde”.
Entre as ruínas do castelo e a San Giacomo Apostolo, uma ruela. A Via Castello é estreita, de pedra. As pequenas residências se alojam pelas encostas da colina. Tudo é de pedra sobre pedra. Só não são mais rústicas do que as antigas grutas inseridas na montanha. Algumas dessas cavernas ainda sobrevivem, inabitadas. Em uma das casas da Via Castello vive um casal com seu único filho, pequeno, ainda beirando os dois anos. Quando estava na barriga da mãe, querendo vir ao mundo, Giuseppe se esquivou da tristeza de seus pais. Pietro, o primogênito, morrera. Era muito novo, sequer havia completado um ano e três meses.
Giuseppe veio para alegrar a família abalada pela perda. Natale Nicola Defrancesco e Mariangela Filippelli agora, ao menos, tinham alguém para recomeçar. Muita coisa havia acontecido nos menos de cinco anos que se passaram desde quando se casaram.
Mas os dias, de certa forma, são todos iguais em Melissa. Natale acorda cedo, antes mesmo de o sol aparecer no horizonte, por trás das montanhas. Nos dias de céu limpo, ele consegue avistar as águas do Mar Jônico. Só de longe, pois sua vida se limita a um pequeno raio. Da Via Castello, vai contornando a pequena estrada que serpenteia Melissa até perceber que a colina ficou para trás, lá em cima. Agora tem a terra sob seus pés. E a enxada nas mãos.
O trabalho é duro. Cuidar da terra em Melissa exige muito do corpo. As propriedades se alongam por um sobe e desce sem fim. Sorte que o calor não castiga, mesmo no verão. E o frio invernal não atrapalha. A única pausa é para o almoço. E tudo em troca de algumas moedas de lira dadas pelos latifundiários que dominam a região desde o período feudal. Primeiro os Micheli, depois os Campitelli e Pignatelli. Agora os mais ricos e ponto. Aos camponeses, resta o trabalho pesado.
Quando o sol termina sua caminhada de um lado para o outro das colinas, é hora de voltar para casa. No caminho, ao menos uma recompensa. Com tantas árvores repletas de bergamota, ninguém dá falta de uma ou duas. Vencidos os pouco mais de 100 metros de altura até o pé do castelo, Natale está de volta. Mariangela e Giuseppe o aguardam, assim como anseiam pelas bergamotas. Ela passou o dia se revezando entre a criança, as tarefas domésticas e os bordados. De vez em quando ela ganha a companhia de sua mãe Caterina. A caminhada desde a Via Roma não dura mais de cinco minutos.
Apesar da mesmice, alguns dias reservam surpresas. Ao chegar em casa, cansado da enxada, Natale recebe uma notícia: seria pai mais uma vez. Além, claro, da felicidade por ter mais uma criança em casa, a preocupação o atacou. Questionava-se como conseguiria alimentar mais um filho com o pouco que recebia dos fazendeiros de Melissa.
Uma espécie de alento surgiu pouco tempo depois. Ele recebera uma carta. Natale correu à casa de seu sogro Antonio para consultar o cunhado Sabatino. Ele era um dos poucos por ali que sabia ler. A carta que fora enviada do outro lado do Atlântico, desde Ribeirãozinho, no interior de São Paulo, era de seu irmão dois anos mais novo, Natale Michele Defrancesco. Sob a pena de outra pessoa, ele descrevia como era a vida nas grandes fazendas de café no Brasil, repletas de imigrantes italianos. Não era uma lida fácil, mas um pouco mais promissora do que na Itália.
Na carta, a primeira desde que rumou ao Brasil com sua esposa Angela e os filhos Francesco e Vittoria poucos meses antes, deixara o contato do dono da fazenda, Carmello Pagliuso, e o convite para que tomasse o vapor para o outro lado do Atlântico e que se juntasse a ele. Na época, logo na virada do século 20, o governo brasileiro pagava passagens e garantia a colocação de italianos nas fazendas cafeeiras, que após a Lei Áurea de 1888 padeciam de mão-de-obra.
Sabendo disso, não foi muito difícil para que Natale decidisse juntar as poucas mudas de roupa que tinha e levar a esposa grávida e o filho para terras brasileiras. Antes, porém, convenceu o cunhado Michele e sua esposa Maria Giuseppa, irmã dos Defrancesco, de que seria uma boa oportunidade. O filho Antonio, de um ano e meio, iria junto. Michele já ouvira falar da vida no Brasil pelo seu tio Carmine, que emigrara em 1895 com a esposa Rosa Maria, outra irmã dos Natales. Ele concordou e planejaram juntos a travessia do oceano.
Em meados de fevereiro de 1901, Natale e Mariangela se despediram emocionados dos pais e dos irmãos que ficavam em Melissa. Sabiam que o reencontro poderia nunca mais acontecer. A distância era enorme e dependendo do que ocorresse no Brasil, seria para sempre.